27 de Junho de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
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Inteiro Teor
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Registro: 2021.0000712768
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal nº 1500189-32.2019.8.26.0229, da Comarca de Hortolândia, em que é apelante M. J. DA S., é apelado M. P. DO E. DE S. P..
ACORDAM , em sessão permanente e virtual da 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Negaram provimento ao recurso. V. U. , de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores SÉRGIO COELHO (Presidente) E GRASSI NETO.
São Paulo, 31 de agosto de 2021.
CÉSAR AUGUSTO ANDRADE DE CASTRO
Relator (a)
Assinatura Eletrônica
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Voto nº 18883
Apelação nº 1500189-32.2019.8.26.0229
Comarca de Hortolândia
Apelante: Márcio José da Silva
Apelado: Ministério Público do Estado de São Paulo
MM. Juiz: Doutor André Faroto Anhê
Ementa
Apelação da Defesa Estupro qualificado
Constrangimento da própria filha, então com 16 anos de idade, à prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal Suficiência de provas à condenação Consistentes depoimentos da vítima e das testemunhas Negativa do acusado isolada do contexto probatório Grave ameaça e violência bem comprovadas Violência psicológica contra a vítima, exercida em razão da relação de paternidade
Circunstância que bastou a incutir tamanho temor na ofendida, a inviabilizar qualquer reação contra o abuso sexual Impossibilidade de desclassificação para o crime de importunação sexual Delito subsidiário, praticado sem violência contra a ofendida Condenação mantida Penabase fixada no mínimo legal Exasperação da pena em 1/2 ante a causa de aumento prevista no artigo 226, inciso II, do CP Regime inicial fechado adequado à quantidade de pena imposta Recurso de apelação desprovido.
Vistos.
MÁRCIO JOSÉ DA SILVA foi condenado a
cumprir a pena de 12 anos de reclusão, em regime inicial fechado, por infração
ao disposto no artigo 213, § 1º, combinado com o artigo 226, inciso II, ambos
do Código Penal.
Inconformado o réu apela, pleiteando a sua
absolvição por atipicidade da conduta, eis que não estaria comprovada a
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violência ou grave ameaça contra a vítima; alternativamente pretende a desclassificação do crime de estupro qualificado para o delito previsto no artigo 215-A do Código Penal.
Recurso bem processado e respondido em contrarrazões.
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do apelo.
Decorrido o prazo para que as partes se manifestassem acerca de eventual oposição ao julgamento virtual, nos termos do artigo 1º, da Resolução nº 549/2011, com redação estabelecida pela Resolução nº 772/2017, ambas do Colendo Órgão Especial deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, não houve oposição a essa forma de julgamento.
É o relatório.
Consta da denúncia que no dia 06 de novembro de 2018, na Rua Di Cavalcante n. 1857, Jardim Amanda, cidade de Hortolândia, MÁRIO JOSÉ DA SILVA praticou atos libidinosos diversos de conjunção carnal com a sua filha Susana Quezia Fonseca da Silva, então com 16 anos de idade.
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Ocorre que na manhã seguinte a vítima acabou por relatar os fatos à sua genitora, que então comunicou os abusos à autoridade policial.
Interrogado no distrito policial, o acusado alegou que os fatos foram criados por sua ex-esposa com a intenção de prejudicá-lo, pois ela não se conformava com a separação.
Contudo, ouvida em Juízo, a vítima, então com 19 anos de idade, disse que em razão do divórcio dos seus pais, ela e os irmãos passaram a residir com o réu. Afirmou que na data dos fatos, contra a sua vontade, o réu lhe determinou que dormissem na mesma cama, e que durante a noite ele passou as mãos em suas nádegas e seus seios, propondo-lhe a prática de relação sexual. Disse ainda que o acusado se deitou sobre ela e lhe contou intimidades a respeito da sua vida sexual, afirmando inclusive “ser costume em Pernambuco os pais tirarem a virgindade das filhas”.
Esclareceu ainda que por temor ao pai, não conseguiu reagir ao abuso sexual, relembrando alguns episódios em que ele agiu com violência física e psicológica contra ela.
A seu turno, o irmão e a genitora da vítima, Davi Mateus Fonseca da Silva e Valdineia Fonseca da Silva, esclareceram em Juízo que a vítima lhes confidenciou os abusos praticados pelo pai durante a noite, bem como confirmaram o comportamento agressivo do acusado para com os seus familiares.
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dormiam. Disse que na noite dos fatos, conversou abertamente com a vítima a respeito do divórcio e do futuro da família, oportunidade em que ela aceitou o convite para dormirem juntos.
Portanto, a despeito do quanto alegado pelo acusado, a meu ver, a materialidade do delito de estupro qualificado está comprovada pela prova oral, não ocorrendo de modo diverso com a autoria.
A jurisprudência é pacífica no sentido de que em delitos da natureza e espécie como o aqui tratado a palavra da vítima adquire especial relevância, porquanto na maior parte das vezes tais crimes são perpetrados às escondidas, razão pela qual as pessoas que se encontram nesta situação de violência são as únicas que têm condições de revelá-la.
E ouvida em duas oportunidades distintas, a ofendida descreveu o abuso com nítida compreensão dos fatos e riqueza de detalhes, não havendo qualquer indício de que estivesse faltando com a verdade ou mesmo agindo por indução por terceiros.
A propósito, não parece crível que ela houvesse fantasiado tais fatos, mesmo porque, na ocasião da sua oitiva em Juízo ela afirmou que nunca compreendeu o que o genitor quis dizer ao afirmar que “em Pernambuco os pais tiram a virgindade das filhas”, a revelar a sua completa inocência.
Tampouco parece verossímil que a imputação fosse criada pela ex-esposa do acusado por não se conformar com a separação, pois conforme informado por todos os familiares ouvidos nos autos, a separação do casal ocorreu por iniciativa da ex-esposa do acusado, não mais suportando os atos de violência doméstica, sexual e psicológica, por parte do seu marido.
Apelação Criminal nº 1500189-32.2019.8.26.0229 -Voto nº 18883 5
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Salta aos olhos ainda o fato de que o réu tentou demonstrar uma relação harmoniosa com a sua filha, quando na verdade ela e os seus familiares informaram o contrário, no sentido de que a adolescente nutria verdadeiro pavor pelo pai, que costumava castigá-la de forma imoderada.
E neste aspecto se caracterizou a violência e a grave ameaça, elementares do crime de estupro.
Em casos como tais, e mesmo nas hipóteses de estupro marital, o crime sexual não necessariamente ocorre mediante violência física, senão em virtude de reiterada violência psicológica praticada contra a mulher.
Por se tratar de abuso sexual praticado no seio familiar, fica nítido que o acusado se valeu de sua condição de guardião da vítima, bem como do temor imposto a ela, sobretudo devido à sua pouca idade.
Observo que a ofendida afirmou em Juízo que “o pior não aconteceu” e que o réu “não chegou a abusá-la”, demonstrando a pouca compreensão sobre a interação abusiva, embora identificasse algo de errado no comportamento do seu genitor.
Sob à ótica dos estudos de gênero, entende-se por violência psicológica as desvalorizações, as críticas, as humilhações, os gestos de ameaça, as condutas de restrições quanto à vida pública, e as condutas destrutivas frente a objetos de valor econômico ou afetivo inclusive de animais de estimação, com a finalidade de desestabilizar a vítima.
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Tanto é assim que a Lei Maria da Penha, desde 2006, já previu a violência psicológica como um dos tipos de violência doméstica, e mais recentemente, foi promulgada a Lei n. 14.188/2021, que trouxe inovações legislativas no combate à violência contra a mulher, inserindo no Código Penal o crime de violência psicológica:
“Artigo 147-B Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.”
Portanto, parece certo concluir a efetiva violência e grave ameaça exercida contra a vítima, ainda que de forma sutil, mas com fins libidinosos, subsumindo os fatos ao crime de estupro.
Outrossim, a ofendida contava com 16 anos de idade à época dos fatos, a bem demonstrar a incidência da modalidade qualificada do delito.
Por outro lado, o pleito de desclassificação da conduta para o crime de importunação sexual é inapropriado, ante a sua subsidiariedade expressa tal tipo penal apenas é aplicável quando os atos não constituírem crime mais grave, a teor do disposto no preceito secundário do artigo 215-A.
Deste modo, o delito de importunação sexual destina-se às condutas praticadas sem violência ou grave ameaça à vítima, diferente da hipótese dos autos, conforme amplamente fundamentado.
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A pena-base foi fixada no mínimo legal de 08 anos de reclusão a míngua de maus antecedentes, permanecendo inalterada na segunda etapa da dosimetria.
Já na terceira fase, presente a causa de aumento prevista no artigo 226, inciso II, do Código Penal, a pena foi exasperada em metade, resultando em 12 anos de reclusão, de forma definitiva.
O regime prisional fechado para o início do cumprimento da pena de reclusão deve prevalecer, em razão da quantidade de pena imposta, nos termos do artigo 33, § 2º, 'a', do Código Penal., sem mencionar que se trata de crime hediondo, violento, perpetrado com grave ameaça e violência à pessoa e causador de severas consequências psicológicas para a vítima.
ASSIM, PELO MEU VOTO, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO.
Andrade de Castro
Relator