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- 2º Grau
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Inteiro Teor
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Registro: 2021.0000724657
DECISÃO MONOCRÁTICA Nº 49.731
Remessa Necessária Cível nº: 1003768-92.2021.8.26.0223
Recorrente: J. E. O.
Recorridos: M. G. L. de O. , M. de G. e S. de E. do M. de G.
Foro de Guarujá/2ª Vara Criminal
Remessa necessária – Infância e Juventude – Ação de obrigação de fazer – Vaga em creche – Período integral – Direito à educação – Direito público subjetivo de natureza constitucional – Exigibilidade independente de regulamentação – Normas de eficácia plena – Determinação judicial para cumprimento de direitos públicos subjetivos – Inexistência de ofensa à autonomia dos poderes ou determinação de políticas públicas – Súmula 65, TJSP – Concretização do direito pelo fornecimento de vaga em condições de ser usufruída – Limitação à ordem cronológica de atendimento – Impossibilidade – Reserva do possível afastada – Disponibilização de vaga em creche próxima, assim entendida aquela que dista até dois quilômetros da residência da criança – Inexistência de vaga em unidade próxima que autoriza a matrícula em outra mais distante, com o fornecimento do transporte – Multa cominatória – Possibilidade – Manutenção da verba honorária – Precedentes – Remessa necessária desprovida.
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VISTOS.
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Trata-se de remessa necessária da r. sentença de fls. 43/46, que julgou procedente a ação de obrigação de fazer ajuizada por M. G. L. DE O. (MENOR) e condenou o MUNICÍPIO DE GUARUJÁ a matricular a autora em estabelecimento de educação infantil, próximo de sua residência, no período integral. Foi fixada multa por dia de descumprimento em duzentos e cinquenta reais, até o limite de vinte e cinco mil reais. A municipalidade foi ainda condenada ao pagamento de honorários advocatícios de seiscentos reais.
Não houve interposição de recurso (fls. 54).
A Douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pela manutenção da r. sentença (fls. 58/61).
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Considerando que a matéria está sumulada nesta Egrégia Corte, passo ao julgamento monocrático, conforme o disposto no art. 932, IV, a, do Código de Processo Civil.
Cuida-se de ação de obrigação de fazer pela qual se garantiu acesso de criança à educação infantil, em creche da rede municipal próxima de sua residência, no período integral.
Ressalta-se, desde logo, que o direito à educação se caracteriza como norma constitucional de eficácia plena, possuindo o indivíduo direito público subjetivo de exigir do Estado a realização de medidas para a concretização ao acesso à educação gratuita e de qualidade.
Com efeito, o art. 208, IV, da Constituição Federal determina ao administrador público o cumprimento de um dever (ordem) direto para com a população, qual seja, o fornecimento de meios para a educação infantil:
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“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
(...)
IV educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;
(...)”
Da mesma forma, prevê o art. 54, IV, do ECA o seguinte:
“Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:
(...)
IV atendimento em creche e préescola às crianças de zero a cinco anos de idade;
(...)”
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Ademais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educacao Nacional fixa a educação infantil como direito do indivíduo e dever do Estado, verbis:
“Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
(...)
II educação infantil gratuita às crianças de até 5 (cinco) anos de idade;
(...)”
Destarte, tanto pela ótica constitucional quanto legal, observa-se a existência de obrigação direta do Município em providenciar, às suas expensas, o atendimento integral e universal das crianças de até 5 (cinco) anos em suas creches e pré-escolas.
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indivíduo, de maneira que não pode o Município, por meio de afirmações do caráter programático da norma ou de ausência de recursos alocados, subverter a ordem constitucional, especialmente porque o próprio texto constitucional fixou o direito de acesso ao ensino obrigatório como um direito público subjetivo (art. 208, § 1º, CF).
Verifica-se, assim, que o cumprimento da ordem constitucional coube, por determinação legal, exclusivamente aos Municípios, que se incumbirão de “oferecer educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.” (art. 11, V, Lei nº 9.394/1996). E isto por meio da operação de creches (art. 30, I, Lei nº 9.394/1996), sejam elas públicas ou contratadas
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pelo Município junto aos particulares.
Portanto, tem-se inaceitável a alegação no sentido de que as aludidas normas possuem caráter programático, eis que “a educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental” (STF AgRg no ARE 639.337 SP Rel. MIN. CELSO DE MELLO
j. 23.08.2011 grifei).
Vale dizer, trata-se de normas de eficácia plena, não só pela previsão constitucional, mas também pela concretização suficiente junto ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por consequência, “descabida a tese da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional,
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sem importância se mostra essa categorização. Tendo em vista a explicitude do ECA, é inequívoca a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito à educação” (STJ
AgRg no RE 1.545.039/DF 2ª T. Rel. MIN. HERMAN BENJAMIN j. 05.11.2015).
De outro lado, havendo impedimento do uso da discricionariedade administrativa, faz-se necessário fixar o atendimento na creche em período integral, sob pena de se esvaziar o fim social da norma, que a um só tempo, busca permitir o atendimento da criança em sua educação inicial e o exercício do direito constitucional dos pais ao trabalho.
Da mesma forma, submeter a criança à espera em uma fila, quando já buscado o atendimento do direito de índole constitucional na esfera extrajudicial, significa dela retirar o exercício do direito à educação até que a administração se adeque para tal atendimento, o que não se admite.
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Isso porque é dever do Estado prover a todos que necessitem do acesso à educação, e não somente a aqueles que estejam em determinada posição em uma lista que só existe pelo descumprimento reiterado da Administração Pública do comando constitucional de acesso pleno ao direito à educação.
Tratando-se, pois, de direito subjetivo previsto em norma de eficácia garantida pela legislação infraconstitucional, não há que se falar em ilegal intervenção do Poder Judiciário nas decisões que cabem ao Poder Executivo. É que ao direito subjetivo lesado cabe, por normativa constitucional, o direito de ação a ser exercido perante o Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF).
Nesse particular, “... ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os
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poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional.” (STJ REsp 575.280-SP 1ª T.
Rel. p/ Acórdão MIN. LUIZ FUX j. 2.9.2004).
Aliás, este E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo consolidou entendimento no sentido da possibilidade da condenação do poder público à obrigação de fazer necessária à concretização de direitos fundamentais, como à saúde e à educação, sem que isto configure ofensa à autonomia dos Poderes, conforme Súmula 65, verbis:
“Não violam os princípios constitucionais da separação dos poderes, da isonomia, da discricionariedade administrativa e da anualidade orçamentária as decisões judiciais que determinam às pessoas jurídicas da
administração direta a
disponibilização de vagas em
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unidades educacionais ou o fornecimento de medicamentos, insumos, suplementos e transporte a crianças ou adolescentes.”
Em outras palavras, embora se admita que o princípio da competência orçamentária atribua ao legislador as decisões finais da destinação dos recursos públicos, especialmente em políticas de atendimento universalizado da população no âmbito da educação, não se pode admitir que esse princípio ganhe ares absolutos, retirando do administrador a responsabilidade de atender as necessidades individuais de crianças e adolescentes. É que “a força do princípio da competência orçamentária do legislador não é ilimitada. Ele não é um princípio absoluto. Direitos individuais podem ter peso maior que razões político-financeiras” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 512-513 grifei).
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Neste ponto, não há como se afastar a responsabilidade do administrador pelas escolhas feitas na formulação e execução do orçamento público. Se as escolhas tornaram insuficientes os recursos para o atendimento da ordem constitucional, há de se adequar a destinação de valores para o atendimento primordial do comando constitucional em favor de crianças e adolescentes, sendo insuficiente recorrer-se a teoria da “reserva do possível” como excludente do descumprimento da Constituição.
No dizer do MIN. CELSO DE MELLO, do C. Supremo Tribunal Federal:
“A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À 'RESERVA DO POSSÍVEL' E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTÊNCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”
- A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de
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políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos
sociais assegurados pela
Constituição da Republica, daí
resultando contextos de
antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas
trágicas”, em decisão
governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas
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programáticas positivadas na
própria Lei Fundamental.
Magistério da doutrina.
- A cláusula da reserva do possível
que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição encontra insuperável limitação na garantia
constitucional do mínimo
existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes” (STF AgR no ARE 639.337-SP 2ª T. Rel. MIN. CELSO DE MELLO j. 23.08.2011 -grifei).
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Nesse contexto, afigura-se
inaplicável a teoria da “reserva do possível” no caso de pedido de disponibilização de vaga em creche, ante a existência de uma situação social e econômica diretamente resultante de escolhas do administrador no direcionamento das verbas públicas. Conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, “esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título de exemplo, o gasto com festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade.” (STJ AgRg no AREsp 790.767-MG 2ª T. Rel. MIN. HUMBERTO MARTINS j. 3.12.2015 grifei).
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da intervenção judicial para a concretização do direito individual de fundamento constitucional, mantendo-se a determinação de primeiro grau para a concessão de vaga em estabelecimento municipal de ensino preferencialmente próximo da residência da família da criança, ou, na impossibilidade, em outra instituição municipal, com o fornecimento de transporte, caso necessário.
No mais, a imposição de multa processual à Fazenda Pública, como ferramenta de coerção para o cumprimento de obrigação de fazer, constitui entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça: REsp 7.707.753 / RS 1ª T. Rel. MIN. LUIZ FUX DJe. 27.2.2007; AgRg no REsp 796.255 / RS 1ª T.
Rel. MIN. LUIZ FUX DJe. 13.11.2006; REsp 831784 / RS 1ª T. Rel.ª MIN.ª DENISE ARRUDA DJe. 07.11.2006; AgRg no REsp 853990 / RS 1ª T. Rel. MIN. JOSÉ DELGADO -DJe 16.10.2006; REsp 851760 / RS 1ª T. Rel.
MIN. TEORI ALBINO ZAVASCKI DJe
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11.09.2006.
E o seu valor (R$ 250,00 por dia, limitado a R$ 25.000,00) está em consonância com o estabelecido pela ampla jurisprudência desta Colenda Câmara Especial.
Finalmente, registro que os honorários advocatícios foram fixados de forma moderada em primeira instância e dentro dos parâmetros consolidados nesta C. Câmara Especial:
“Reexame Necessário Educação
Fornecimento de vagas em
creche/pré-escola Ação de
Obrigação de Fazer Obrigação do Poder Público Direito assegurado pela Constituição Federal e pelo ECA Aplicação das Súmulas 63, 65 e 68 do E. TJSP Ausência de violação ao princípio da separação dos poderes Inaplicabilidade da teoria da reserva do possível à
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hipótese dos autos Direito líquido e certo violado diante da negativa estatal em conceder a vaga pleiteada pela criança
Administrador que deve se pautar pelo princípio da máxima efetividade da Constituição
Ausência de direito a escolha de escola específica Administração que deve providenciar a vaga à criança em unidade escolar localizada em até dois quilômetros de sua residência Possibilidade de custeio de rede privada de ensino, em hipótese excepcional, como meio eficaz de resguardo do direito de acesso à educação Honorários advocatícios Verba honorária que é devida Fixação em primeira instância em R$ 600,00
Manutenção eis que não é excessivo e não foi alvo de impugnação
Custas e Despesas Processuais
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Condenação ao pagamento
Descabimento Observância ao artigo 141, § 2º, da Lei 8.069/90 e ao artigo 7º, inciso I, da Lei nº 11.608, de 29.12.2003 Reexame necessário parcialmente provido.”
(Reexame necessário nº
1000903-14.2020.8.26.0197, Rel. Des. Renato Genzani Filho, j. 05/10/2020).
Diante do exposto, nego provimento à remessa necessária.
Int.
São Paulo, 3 de setembro de 2021.
GUILHERME G. STRENGER
Presidente da Seção de Direito Criminal
Relator